terça-feira, 14 de novembro de 2017

Dry Martini

devia ser uma e meia da madrugada. tava me sentido tão presa tão sufocada que resolvi sair daquela caixa de sapato, que as pessoas insistem em apelidar de "apartamento". a noite já não tinha mais luar. sequer estrelas. a noite estava tão nua e crua que nem se ouvia mais gatos a trepar na sacada do 217. não encontrei viva alma quando desci as escadas, talvez porque eu - como boa claustrofóbica - não ando de elevadores. encontrei o seu baltazar, o síndico das caixas de sapatos, na portaria lendo, ele que sempre quis se tornar um psicanalista, logo arrisquei: "freud de novo, seu baltazar?", ele riu "não, snoopy". atravessei a rua e entrei no botequim do seu ricardo. ele coloca brubeck só para me animar e pensar que vai enganar, que vai conseguir espantar toda dor que nenhum jazz saberia exprimir. mas não passa. ele fala que cada dia mais me pareço com ela, a voz, os olhos, o jeito tipicamente paulista. eu falei que quero terminar os estudos e voltar pra california. te encontrar nas ruas, com a tua voz nos meus pensamentos, parando e perguntando para as pessoas como tu eras. mas logo esqueço. sufocada pelos boletos empilhados, pelos cheques voltados, pelo cinzeiro abarrotado, pela pia que não cessa o pinga-pinga, pelo barulho do arranhar final do long-play, pelas flores já murchas e mortas. agora o dry martini não é a única coisa seca na minha vida. sequei-me.